sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

evasões em anonimato

Adoro a novidade; o conhecer coisas novas. Mas reservo-me uma excepção. A minha cidade. Há qualquer coisa de reconfortante e belo na familiaridade dos caminhos e paisagens de sempre. E qualquer coisa de macabro e sádico no envolvente citadino.
-----------------------------------------------
Enquanto regresso de uma viagem, uma espécie de amante fugaz e passageira a quem se diz um adeus breve, sempre torno ao verdadeiro amor da minha vida – a rotina do bulício cansativo rodeado pelo nevoeiro industrial que se faz sentir nas vias respiratórias, tornando-me quase toxicodependente dos compostos nocivos que pairam no ar.
Sabes, é aquela tirada de sempre: o vício, pensei eu.
Tal como cocaína injectada sem dó nem dor, ou aqueles 0,6mg de nicotina e 8g de alcatrão contidos num cigarro que absorvo em lânguidos e compassados fôlegos sempre que sinto a necessidade melancólica de olhar o mar em varandas perdidas, o fumo, sempre o fumo poluído deste meu recanto urbano, entorpece-me os sentidos e vicia.
Sim, é como um arranhar de unhas envernizadas de vermelho, que encruam com o sal desse mar de lágrimas da tal amante perdida, na pele suada de um romance fugidio nessas noites de calor na baixa. «São 100 euros» diria a puta para o seu cliente satisfeito e arranhado que lhe pagaria sem demora e sairia para a rua, absorvendo todos os cheiros que a civilização moderna tem para lhe oferecer.
«Vês, é vício» disse-me a minha outra moradora do meu corpo. «Se não é o tabaco depois da foda, é o ar conspurcado das ruas da noite».

Às vezes tento não gostar tanto disto, tento não apreciar todo e cada defeito minucioso que Lisboa me apresenta. Tanto cheiro e sabor que preferia não saber, não conhecer. Penso, talvez ilogicamente, em tudo o que poderia ter. Todos os sítios a que podia chamar “meus”.
«Não seria o mesmo», responde-me ela.
Não, não seria, concluo.
E regresso à realidade por entre o cheiro a químicos descolorantes e abrasivos, deixando que a água a ferver escolha o seu caminho deambulante pelas minhas costas, percorrendo trilhos de pele morena e deixando a sua marca em gotículas salpicadas aqui e ali.

É vício.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

adormecer

eu não quero dormir porque não quero sonhar porque os sonhos nunca se tornam realidade. não os bons, pelo menos. nunca os bons. por isso não quero sonhar. não, não, não. NÃO.

não quero dormir.

conversas com sabor a lima-limão

pelo inevitável sabor que sentia na boca, ao falar, ele sabia que isto era diferente.
------------------
há sempre tão diversos tipos de conversas.
lamentavelmente, termina sempre no mesmo. “então, tudo bem?” “sim e contigo?”, como se a (des)preocupação polida e envernizada fosse mais fácil de engolir. “mas, então, e novidades?” “ah, por aqui vai tudo na mesma” e bem que ela podia estar mal e mostrá-lo nas suas respostas que ninguém iria querer saber ou sequer reparar. tu ias continuar com a tua vida a navegar no ciberespaço. é a podridão do novo século.
“sabes quando tens um cartuxo de balas vazio? o fumo depois do disparo? a pólvora queimada? aquele cheiro que fica no ar?” “desculpa, estou atrasado, depois vemos isso”, mas depois não deu porque ela suicidou-se; tu mandaste flores e um postal electrónico “condolências para a família”.
«se navegasses em alto mar, terias tido mais resposta, pobre coitada»
só te respondem nas horas vagas. só nos respondemos uns aos outros nas horas vagas. fossem os teus olhos máquinas fotográficas e os teus ouvidos um gravador. corrijo; fosse o teu cérebro uma máquina de filmar, dessas ainda funcionantes a película, não!, daquelas que te mostram as texturas em 3D e o som em Sistema Surround.  assim, poderias gravar estes momentos suspensos de não-diálogo para verem todos um dia, verem como somos todos a mesma escumalha, tão viciados no nosso próprio ego e na nossa própria história.

“era um gin tónico com limão” “são cinco tostões” e atiras cinco euros, sem reparares sequer naquele velho merceeiro que não sabe funcionar com esta nova moeda. prestasses atenção e terias poupado uma batelada de dinheiro. “boa tarde” “adeus e bem-haja”, mas mal-haja digo eu que o mal corrompe tudo e todos.

“bem-haja!” diz ele outra vez “querida, tenho de passar pelo escritório…” respondes tu para o auricular.
-----------------------------
mas desta vez foi diferente. um bem-haja

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

X+(eu)=2

julgo que é quando perdemos as contas a quem é X, Y ou Z que concluímos o emaranhado que é a nossa existência. recordo e releio excertos do passado que passei e sinto que tudo poderia ter sido em relação a qualquer caracter alfabético por quem eu um dia tive especial predilecção no acto de escrever.

uns, é claro, são evidentemente vogais; outros, consoantes. mas, no fundo, não passam todos de letras que formam palavras que formam frases que formam parágrafos que formam capítulos que formam vidas.

não sei já se tu, símbolo de alfabetização, eras X, Y ou Z. talvez fosses matemática. talvez ainda sejas álgebra... só sei que tu és o único botão no meu teclado que continua a ser gasto vezes e vezes sem conta. e só espero que um dia destes possa escrever-te livremente na minha caligrafia própria e complicada.


"Let X equal the quantity of all quantities of X. Let X equal the cold. It is cold in December. The months of cold equal November through February. There are four months of cold, and four of heat, leaving four months of indeterminate temperature. In February it snows. In March the Lake is a lake of ice. In September the students come back and the bookstores are full. Let X equal the month of full bookstores. The number of books approaches infinity as the number of months of cold approaches four. I will never be as cold now as I will in the future. The future of cold is infinite. The future of heat is the future of cold..." [in Proof]

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

repressões

soubesses o que a vida já deu voltas, saberias como tudo isto me é estranho.

perdi a vontade de escrever como quem perde a vontade de beber um café pela manhã: de forma casual e sem me aperceber; foi só quando as cefaleias da abstinência me atacaram que entendi o que tinha deixado por fazer inconscientemente. «tsc, cabeça a minha», pensei eu. mas, não. de facto, não se pode comparar a abstinência da escrita com outra qualquer. não escrever é não respirar. sucumbi.

«o mundo está diferente», são estas as minhas primeiras palavras após regressar ao mundo dos consumidores de oxigénio. «eu estou diferente».